quinta-feira, abril 07, 2005

O Tempo Destrói Tudo

Aqui sentado com a cabeça entre as mãos, queria não ter de o fazer…
Da rua, através da persiana da varanda, vem-me agora o barulho exaustivo do carro do lixo, e de quando em vez, o deslizar de um automóvel na quietude da noite, ou o ruído de um avião fazendo estremecer os vidros, de partida para a América ou chegando de Paris.
Este calor obsessivo transpira-me a mente, deixando-me levar nebulosamente pela frescura de um giro, sonhando com o meu trajecto preferido e tão poucas vezes percorrido.
Imagino-me comodamente sentado à janela:
No banco da frente, envergando uma camisa leve azul e branca, senta-se, com as bengalas a seu lado, um homem já de idade, uma adolescente de cara inocente mas bonitinha mostrando as pernas magras, embora belas, através duns calções cor de laranja, acomoda-se no banco do outro lado.O pica é um tipo baixo e atarracado, sob a farda cinzenta da companhia.
O casaco, pendurou-o do lado esquerdo e as mangas da camisa azul pálido vão arregaçadas. Tem a testa gotejada de suor. Está um dia quente, abafado, e como é feriado, os nativos foram todos para a praia.
O eléctrico recebe agora mais gente, que se espalha preguiçosamente com exclamações e suspiros de calor, e arranca num estremeção com os rodados a rangerem nos carris.
Do parapeito da janela, onde vou apoiado, recebo a aragem provocada pela velocidade.
Atravessamos o Palácio de Cristal, com as suas imensas árvores frondosas e uma ou outra pessoa aproveitando a sombra para se esquivar ao Sol tórrido da tarde, já que não pôde deslocar-se á costa ou ficar em casa a fazer a sesta, e chegamos aos Clérigos com a basílica de enorme torre cor de ouro do lado direito.
Do lado esquerdo, cheio de crianças andando de baloiços ou escorrega, sob o olhar vigilante das mães, o jardim, enorme, também com velhos sentados em bancos utilizando a sombra de mais um dia.
Seguimos em frente, descendo a calçada até São Bento, lentamente, parando aqui e ali para deixar entrar uma mulher gorducha de vestido azul ás bolinhas brancas, sem mangas e já sem cor, um lenço à volta da cabeça ou de olhar distante por detrás dos óculos grossos em armação preta, um homem de fato seboso, com uma perna estropiada, subindo pela frente ajudado pelo pica.
Passamos São Bento e agora mais estreita, rodeada de prédios escurecidos, continuamos ainda pela calçada, com negros de bonés vermelhos e camisas coloridas, conversando no passeio em grupos de três, sobre as negras do bairro talvez, ou vendo apenas passar o eléctrico.
Perto da Praça Do Cubo, desceu a adolescente bonita de calções cor de laranja, que sorridente apanhou o Funicular Dos Guindais, vai ter com o namorado ou com alguma amiga que não vê todos os dias!
Chegamos depois á Alfândega onde as pombas esvoaçam à volta do largo, incitadas pelo fresco das árvores, na busca de comida que os habitantes da zona lhe vêm trazer.
Alguns reformados descansam a velhice nos bancos do largo, aquele de camisa verde sobre uma t-shirt cor de cenoura, na fala com um rapaz novo, era empregado de uma empresa de segurança conhecido pela sua arrogância, o mariola tem estatura mediana e ar reguila, no seu fato de ganga coçada,
Como está desempregado, vende pólen aos turistas ou vai fazendo uns roubitos, coisa pouca, juntamente com aquele grupo além, na ponta do largo, tediosamente vendo as pessoas a passar.
Continuando a marginal, deserta e soalheira com o castanho do Douro do lado esquerdo, percorremos uma artéria íngreme e sombria com o seu declive alucinante e irreal, tipo montanha russa retirada de contos fantásticos, sempre em curva, primeiro duas pequenas, a seguir uma maior parecendo nunca mais acabar, que nos suga de uma zona relativamente desordenada.
Estamos cada vez mais perto do Mar…sinto-o nas narinas.
A um recanto, no Passeio Alegre, do lado direito do largo, numa espécie de jardim, existem árvores em cuja sombra descansam reformados, vejam aquele de ar bonacheirão, vermelhudo, os cabelos brancos a contrastar com castanho do boné, refastelado no banco, camisa azul claro enxovalhada e mangas arregaçadas, balbuciando de olhar fixo por cima dos óculos estragados, “ a culpa foi toda tua”, em tom ameaçador aos que passam e companheiros de entardecer.
Na sombra daquela capelinha, ao cimo do largo, uma mulher de lenço azul e branco na cabeça, vende rebuçados compridos embrulhados em papel às riscas vermelho e brancas, juntamente com tremoços amarelados, abana um leque de palha para afastar o calor.
Num cenário de telhados vermelhos, estendendo-se até ao azul do mar, um grupo de turistas, loiros e ar angélico, enfiados nos seus trajes desbotados e estrangeiros, roxo, rosa, amarelo, vermelho, branco, tiram fotografias baratas e retratos familiares ouvindo com atenção o guia.
A curva ao fundo, tem um empregado a sinalizar o tráfego vermelho e verde, à sombra de uma árvore, espreitando para idosos a afogar a sede no recolhimento mafioso da tasca ao lado.
Dobrada a curva, passamos por uma zona mais larga, onde se cruzam os automóveis, e entramos na Avenida da Boavista, a maior da Europa em linha recta dizem. Por aqui, as janelas e varandas das casas são revestidas de azulejos em tons azulados.
Uns miúdos de cabelo molhado e camisa na mão correm á passagem do eléctrico, pendurando-se com grande algazarra na plataforma traseira, tal como nos filmes, devem vir de tomar banho.
Logo chegamos á rotunda, onde perto daquela capela, avistamos uma senhora que dela sai para a claridade do dia vestida de preto.
Em breve chegaremos ao topo.

Que mais podemos fazer senão continuar?
E isso não podemos fazer.