sábado, maio 29, 2004

Entre quatro paredes...

O tempo está-se a esgotar... A olho nu não parece, mas conforme o tempo passa noto que a sala fica cada vez mais pequena...
Hun?! Se estou a falar consigo? Peço desculpa, mas, na verdade, nem tinha reparado que aí estava... Eu sou assim, distraído por natureza e às vezes penso alto...
Se estou a par da minha situação? Sim, claro; escusa de estar com rodeios e paternalismos. Sei que estou condenado; encontro-me numa sala vazia, paredes brancas, para não variar; o chão é uma grelha, através dela consigo ver os outros condenados - riem-se de mim porque eu vou morrer primeiro, mas o que eles não sabem é que vão sofrer mais do que eu... eu simplesmente me recusei a desistir e os “juízes” decidiram poupar-me o sofrimento... acabando com ele... eu não ia conseguir... é uma espécie de prémio pela conscencialização. Os que riem estão tão condenados como eu, apenas vão sofrer durante mais tempo... Vê? Lá estou eu a divagar outra vez...
Continuando, o tecto é também ele branco com essa janelinha pequena onde está e de onde eles me vêem... Já lhe falei que as paredes se mexem? Sim, claro! Não reparou que, à medida que falamos, o meu espaço diminui? Sim, era isso que eu estava a dizer quando chegou...
Quem são esse “eles”, os juízes a que me refiro? São pessoas como você... O que nos distingue? O fracasso e o sucesso, obviamente! Eu fracassei e, por isso, estou aqui; como todos os outros que fracassaram... Quem nos condenou? A sociedade! Obviamente! O amigo não parece saber muito da vida; se não se apruma qualquer dia está no meu lugar! (risos) Estou a brincar consigo, isso é tudo muito natural...
Como é que isto me aconteceu? Não me diga que vai ficar com pena que é o pior que me pode fazer! Não, não me pode ajudar, deixe lá isso... o problema é só meu... Sim, já me tentaram ajudar, mas é escusado; alguns até tentaram esticar o braço e dar-me a mão, mas já viu a altura destas paredes..?
Como é que estou tão tranquilo? Que me adianta desesperar e chorar pelos cantos? Só aqui tenho quatro e cada vez há menos espaço entre eles... para dizer a verdade sou um pouco inconsciente, só quando o terror realmente se aproxima é que o sinto... é uma característica minha, tenho essa frieza de me alhear dos problemas... até dos meus... sofro menos...
Estou cada vez com menos espaço? Eu noto! (sorrisos) Não fique assim, não pode fazer nada; além disso amanhã já nem se lembrará de mim... Tenha-me como um exemplo do que não se deve tornar e já não terei sido inútil... Está a ver? Ainda me conseguiu alegrar, já valeu a pena... Mas agora tem de ir; tem mais que fazer e eu vou ser esmagado. Não é uma visão muito agradável, preferia que não visse... Também foi um prazer, até amanh... deixe lá, é do hábito... vá com Deus...
E cá estou eu a falar sozinho novamente... não será por muito; as paredes estão já coladas a mim... Olho-me ao espelho... Merda!!! Esqueci-me de lhe falar no espelho; não é que fosse importante, mas gostava de lhe ter falado do sadismo deles – tenho um espelho da minha altura em cada uma das paredes: mata-me e obrigam-me a ver... pior: obrigam-me a ver-me! Para que estou com isto... eu sei que a culpa é só minha...
Vá, venham elas, já as sinto a apertarem-me os ossos que, por sua vez, me rasgam e pele, e me trespassam os órgãos...
Os meus pensamentos finais acabam por ser positivos, até bastante agradáveis: primeiro, graças ao meu sangue as paredes começam a ficar vermelhas e brancas, cores que sempre me agradaram; segundo, nunca quis um caixão de madeira, sempre quis um caixão de betão...